26 de out. de 2007

de ladrões e crianças

quando comecei a roubar eu tinha acabado de perder tudo. foi logo após meu irmão nascer e de repente eu não tinha mais nada perto de mim, nem mãe, nem pai. pouco importa se isso era fantasia de criança, o fato é que, enquanto criança, eu vivi nessa realidade de ausências e de abandono. eu me vejo, do lugar de agora, sentada ali, no murinho do prédio, sozinha, com a boneca. ela se tornou o objeto mais importante na minha infância, eu dizia que era a minha filha, mas era mentira, era ela quem cuidava de mim, eu a pegava no colo e falava tudo que eu precisava ouvir, como se através de um espelho de ruídos, a minha própria voz ecoasse do silêncio da boneca. e assim, nessa vida inventada de abandono, eu comecei a roubar. batons, canetas, merenda, papéis de carta. borrachas com cheirinho. giz. pirulito. qualquer coisa que estivesse ao alcance das pequenas mãos. mas é preciso dizer: jamais consegui ficar com nenhum objeto roubado, eu sempre era descoberta. não sei se por descuido, por não saber elaborar crimes perfeitos, ou se porque eu sempre deixara pistas. a partir de um momento as pessoas não questionavam mais quem teria sido, já vinham direto na minha bolsinha e descobriam o objeto sumido. mas aí descobri um lugar muito secreto: guardava as coisas dentro da calcinha. e me sentia muito incrível tendo uma idéia tão boa e tão secreta. mas nada que eu roubava me valia de muita coisa. eu só precisava disso: pertencer, através dos objetos pertencidos à força. mas um dia, a vergonha em público: professora, diretora, todas as outras crianças e eu, minha mochila sobre a carteira da sala de aula, e todos os papéis de carta da minha melhor amiga dentro dos meus cadernos. quanto mais procuravam, mais achavam tudo no meio das minhas coisas. eu chorava, com a cabeça baixa e as mãos no rosto. tive muita vergonha e aprendi que não se podia fazer nada pertencer à força. fiquei uma semana de castigo sem poder descer para brincar. mas aprendi, aprendi bem. depois disso tive somente alguns problemas para dormir, e não passou muito tempo larguei a boneca também. e numa lembrança de clarice, e de um conto sobre uma menina e duas galinhas, eu repito: e depois vieram os homens. e o amor. esse desejo estranho de pertencer e não pertencer, de não percorrer caminhos precisos, mas de também querer reconhecer os novos. sempre esse desejo pelo pertencimento, mesmo que seja à força. mesmo que seja falso. desde que, por um instante, a gente saiba que existe um segredo, uma coisa guardada, escondida por mãos pequenas onde ninguém jamais saberá. há como culpar um roubo que não deseja o objeto? todas as vezes em que roubei eu só queria pertencer a alguma coisa. agora sei.

2 comentários:

Magda Joele disse...

Li tudo de uma vez, overdose da boa!
Lindo meninas!
Continuo acompanhando...
Beijos

Andre Amparo disse...

brilhante.